Through a Lens Brightly: Mark Turbyfill

1967. 16mm, cor, som; 15 minutos

Com: Mark Turbyfill

Filmado em Chicago. Arquivo Temenos, Zurique


A ser eu próprio numa biografia de Markopoulos

de Mark Turbyfill

As minhas primeiras memórias do cinema remontam ao tempo do cinematógrafo em Oklahoma City, onde vi Mary Pickford no ecrã antes de se tornar na Querida da América. Pouco tempo depois, assisti à rodagem de comédias de slapstick da Essanay, no meu bairro, na ensolarada praia de Clarendon, em Chicago. Os anos passaram sem que nenhuma câmara olhasse para mim. E, sem estar à espera, meio século mais tarde, recebi um convite para ser eu próprio, naquilo que é habitualmente chamado de filme underground.

Fiquei num estado de choque relativo. Já estava familiarizado com a reputação impressionante do jovem cineasta Gregory J. Markopoulos. E era o próprio que ia dirigir as suas lentes penetrantes para mim.

Em Nova Iorque, o crítico de arte e cinema Parker Tyler e o perceptivo e sensível pianista Allen Tanner, informaram-me que Markopoulos (“avant-garde”, “muito à frente”, “sensacional e muito requisitado em Nova Iorque”) tinha acabado de criar um Departamento de Cinema no Art Institut de Chicago. Apesar da sua segurança manifesta, dizia-se que se rodeava por uma aparente, mas irreal, áurea de vergonha. Foi-me recomendado que lhe apresentasse alguns amigos entusiastas na "cidade brigona de ombros largos" (“brawling City of the Big Shoulders”).

Sem perder mais tempo, telefonei a Ruth Page, a directora do Ballet da Lyric Opera Company de Chicago, para a informar acerca do jovem greco-americano nascido em Toledo, Ohio, e produtor de filmes extraordinários. Como tinha previsto, a Miss Page, não só já tinha sido informada acerca do último candidato à fama em Chicago, mas também já o tinha convidado para um jantar oferecido na noite seguinte no seu apartamento em Lake Shore Drive e para ir de seguida ao Civic Opera House, onde se ia apresentar uma das suas coreografias. Com o seu charme infalível e a sua hospitalidade, convidou-me para ir ao jantar, na convicção de que eu gostaria de encontrar o mago provocador e recém-chegado do cinema underground.

A Ruth Page tinha razão. Quando me apresentou a Gregory J. Markopoulos percebi a razão porque chama tanto a atenção – com a sua altura agradável, a cabeça bem esculpida, o cabelo acastanhado, abundante, os seus olhos castanhos-pretos. Parecia estar habituado a novos ambientes e confortável quando se aproximava para se apresentar e nos cumprimentar. Tive a certeza de que tinha uma qualquer força escondida.

Falar da sua força, no entanto, não é o mesmo que dizer que a usa bruscamente, mesmo quando é ameaçado pela curiosidade inconveniente, ou quando, por acaso, é perturbado por alusões sem graça feitas por fala-baratos antes e depois do jantar. Mostra que é senhor de uma gentileza desarmante, ou deixa escapar uma frase apropriada que silencia as pessoas mais aborrecidas, livrando-se com brio dos inoportunos.

Enquanto conversávamos entre os actos, sentados no camarote da Miss Page na Ópera, impressionou-me a vivacidade dos seus comentários sobre o ballet antigo e moderno; e acerca das adoráveis bailarinas que tornaram esses ballets memoráveis. Mas parecia interessar-se mais sobre literatura e sobre as escrituras indianas que propriamente sobre dança. As suas referências incluem mais provavelmente o Mahabarata do que o repertório de Balanchine. E se, ao falar acerca das escrituras, referirmos a essência mística encontrada em Balzac, provavelmente apercebemo-nos que é isso que interessa a este jovem cineasta. De facto, surpreendi-me ao saber que um dos filmes de Markopoulos, Himself as Herself, era baseado na novela de Balzac, Seraphita.

O meu convite para aparecer num filme de Markopoulos foi bastante inesperado. Logo nas primeiras horas em que conheci este jovem mestre do cinema, convenci-me de que um filme seu devia resplandecer com cores magníficas. Ver-me envolvido pelos tons radiantes utilizados por este artista, provocou-me uma sensação de bem-estar. Supus que nunca tivesse visto nenhuma das minhas pinturas e lido poucos, se algum, dos meus poemas. Certamente que não tinha visto nenhum dos ballets que dancei com Ruth Page – porque de facto, tinham aparecido e desaparecido antes do seu tempo. Por outro lado, eu não tinha visto os seus filmes. Estavamos quites, por assim dizer. Estavamos os dois às escuras no que dizia respeito ao valor artístico do trabalho de cada um. A nossa intuição era simplesmente a de confiar um no outro. Sem mais questões, marcámos uma data para filmar.

Acabou por ser um fime biográfico filmado no meu apartamento, onde Markopoulos encontrou muitas das paredes cobertas de pinturas de Turbyfill. As instruções que me deu não deixaram perceber muito sobre o processo e o seu método criativo; de acordo com o que me pediu, apenas podia imaginar o que era possível fazer: um número não especificado de fotografias antigas e recentes, programas de ballet, revistas em que aparecessem poemas meus e cópias dos meus livros. Esgravatei nos meus arquivos, incerto do que estava enterrado, já meio esquecido. Espalhada sobre uma grande mesa, a miscelânea das minhas descobertas parecia uma confusão sem solução. Olhar para a pilha de relíquias acumuladas ao longo de muitos anos, pode testar a paciência de um antiquário, intrigar um estaticista, abismar um psicoanalista. Se um psicometrista analizasse amostras destes mementos, ter-se-ia seguramente sentido confuso, como se se visse a um espelho, por enigma.

Mas com a avaliação rápida que Markopoulos fez do material, a confusão parecia transformar-se em luz e ordem, como se fosse um puzzle resolvido num padrão bem proporcional. Um segmento importante da minha vida foi recapturado e iluminado numa espécie de mosaico organizado por este artista extremamente intuitivo a partir de fragmentos fortuitos e desorganizados. Nenhuma hesitação evidente em escolher uma juxtaposição em deterimento de outra. As suas decisões pareciam ser tomadas instantaneamente.

Questiono-me se as “decisões” de Markopoulos, em vez de serem previamente decididas, não se vão sucedendo e evoluíndo. Será possível que sejam de uma natureza caótica, imagens que surgem de repente de uma região a quatro dimensões? Recordei-me de uma passagem da Evolução Criativa de Bergson, que descreve o que vi enquanto observava Markopoulos a trabalhar. Encontrei essa passagem num capítulo chamado “O Mecanismo Cinematográfico do Pensamento e a Ilusão Mecanística”:

“Quando pensamos, nos expressamos ou percebemos esse devir”, escreveu Bergson, “dificilmente fazemos outra coisa a não ser accionar uma espécie de cinematógrafo dentro de nós…Cada uma das nossas acções almeja a uma relativa inclusão da nossa vontade na realidade. Existe, entre o nosso corpo e os outros corpos, uma ordenação semelhante à de peças de vidro que compõem uma imagem caleidoscópica. A nossa tarefa é ordenar e reordenar, agitando a cada vez o caleidoscópio, mas sem ter interesse nesse movimento, apenas vendo a imagem que daí surge.”

Pensei na técnica de “montar dentro da câmara” deste reputado mágico. Antes de trabalhar com Markopoulos, supunha que confiar num tal método poderia criar resultados comparáveis aos que se obtêm num jogo, agora em desuso – a competição em que um concorrente vendado tem de encontrar a cauda do burro.

Pelo que consegui perceber, “fazer a montagem dentro da câmara”, resulta no tipo de prática que se podia esperar de um cineasta com um olhar de raio-x. Um tal artista talvez recorresse a um sentido do espaço como o que expõs C. H. Hinton nos seus livros, A New Era of Thought e The Fourth Dimension. Hinton desenvolveu uma série de exercícios com aglomerados de cubos coloridos, com os quais procurava despertar um sentido do espaço a quatro dimensões. Os exercícios complexos eram factuais e objectivos, e acreditava-se serem ao mesmo tempo capazes de permitir ao estudante ou ao praticante convicto uma forma de visão interior.

Quaisquer que sejam as formas que Gregory Markopoulos encontrou para “ver” o movimento que se dá dentro da sua câmara, pode dizer-se que o modo como vê é tão nítido, tão claro, que produz resultados de uma precisão e beleza sobrenaturais.